Segundo Theodor Adorno, após Auschwitz, não é possível escrever poesia. Tal ato torna-se “bárbaro”. Para muitos autores de língua alemã surgidos no entre guerras, a poesia é mais do que necessária justamente para evitar que a barbárie se repita.
Nesse panteão, temos poetas como Ingeborg Bachmann e Paul Celan que reafirmaram a palavra poética para salvarem-se do absurdo.
Nascida na Áustria em 1926, filha de um professor que aderiu ao nazismo, o destino quis que Bachmann olhasse para o lado oposto da história contada por seu pai - e se apaixonou por Celan, imigrante romeno de pais judeus, fugindo dos campos de concentração da Alemanha.
Para muitos especialistas em suas obras - como Claudia Cavalcanti, que traduziu o livro de Ingeborg O tempo adiado e outros poemas e Cristal, de Celan - ambos se influenciaram mutuamente e produziram alguns dos mais belos poemas escritos em língua alemã. Eles se conheceram em 1948 e trocaram correspondências que foram reunidas em Tempo do Coração, livro publicado pela editora portuguesa Antigona.
Como não lembrar de Celan neste poema que abre o livro de Bachmann:
Assim como Orfeu, toco
a morte nas cordas da vida
e ante a beleza do mundo
e de teus olhos, que comandam o céu,
só sei dizer o obscuro.
Não esqueças que tu também, de repente,
naquela manhã, teu leito
ainda úmido de orvalho e o cravo
dormindo perto de teu coração,
viste o rio obscuro
passar por ti.
O rio Sena que faria o poeta romeno mergulhar, realizando uma passagem para além-vida que eternizaria sua obra.
Nesse assombro de duas vidas marcadas por muita dor, mas também pela beleza da linguagem desejada e preservada. O assombro da guerra pairava no ar, não teve fim, e o amor sussurrava um paliativo para tanta destruição:
Explica-me, Amor, o que não sei explicar:
deveria eu lidar com o breve assombroso tempo
só em pensamento e nada
conhecer do amor e nada fazer com amor?
É preciso que se pense? Ele não faz falta?
O lugar fronteiriço do trauma pode ser ocupado pela língua em fuga, uma língua que cabe no exílio e no reencontrar-se diante do nada.
[Ingeborg Bachmann e Paul Celan]
Ingeborg Bachmann viveu em vários países: Áutria, Itália, Suíça, Alemanha… Enquanto Celan se exilou na França. Ambos escreviam em língua materna (o alemão), mas não se reconheciam nessa fratura. Uma fratura que veio com o nazismo.
Porém, persistiram na língua materna. Mesmo que seus poemas exponham a dicotomia do pertencer e do não pertencer.
Vocês, palavras, levantem, sigam-me!,
e quando já tivermos ido mais longe,
longe demais, iremos ainda
mais longe, isso não tem fim.
Escreve Bachmann. Para Celan e a poeta alemã, só a palavra pode curar o que não se pode remediar.
P.S: O livro O tempo adiado e outros poemas foi publicado em 2020 pela editora Todavia.
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Fernanda.
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