Em entrevistas, Annie Ernaux afirma que escreve para “vingar a raça”. Ou seja, a escritora francesa escreve para fazer jus à sua condição social originária - vinda da classe operária no interior da França.
Ernaux também nega que escreve ficção. Ela afirma que escreve flertando com a sociologia, especialmente realizada por Pierre Bourdieu. A escritora fundou o termo autossociobiografia para exemplificar sua obra.
Mas em entrevista para o El Grand Continent, ela deixa entrever o termo “autobiografia” como um dos gêneros que pratica. Afirma: “Logo generalizei a todos os temas que abordei, incluindo quando o tema do texto parecia escapar das determinações sociais, como a paixão em Pasión simple. É certo que esta é a ambiguidade da posição das autobiografias literária.” [Tradução minha. A entrevista completa você pode ler aqui]
A discussão entre a escrita de si e a autoficção tem sido prolífica nos últimos anos. O debate começou na França nos anos 1970 com Serge Doubrovsky e costuma ser caloroso, enredando opositores e entusiastas.
Annie Ernaux figura na lista de escritores que flertam com a autoficção, mas a autora nega essa categoria. Onde situaria a obra de Ernaux, então?
Dizer a pura verdade na linguagem já gera ruídos, pois sabemos que ao adentrar a linguagem há uma seleção prévia de palavras e fatos a serem narrados. A ficcionalização do discurso já está aí…
Em Paixão Simples, Annie Ernaux reconta a história de amor que viveu com um homem vinte anos mais novo. Ela já mãe e divorciada. Há a captura do tempo passado - ela revive os momentos em que o aguardava chegar em sua casa; toda a angústia quando se separavam.
“Durante todo esse tempo, tinha a impressão de viver minha paixão de forma romanesca, mas agora sei qual é a forma em que escrevo, se a do testemunho, da confissão tal como praticada nos diários femininos, ou se a do manifesto ou processo verbal, até do comentário textual”: aqui a escritora deixa entrever que está consciente da construção de uma narrativa. E inscrever-se é ficcionalizar.
Não é possível ler Ernaux sem recorremos ao debate sobre autoficção. Ela é consciente de seu ofício. E suas obras são classificadas como “romance”.
Em Paixão Simples, o que a escritora francesa quer é embaralhar os dados sobre o que configura um romance ou uma autobiografia. Como lemos a seguir: “Não estou contando a narrativa de um relacionamento, nem uma história (que me escapa pela metade) com uma cronologia precisa (…). Para mim não havia essa cronologia em nossa relação, eu só conhecia a presença ou a ausência”.
Muito mais que escrever sobre o envelhecimento da mulher e seu direito ao amor, sobre a importância da juventude e beleza numa sociedade marcadamente machista, Ernaux faz nesse livro uma ode à construção narrativa.
Sabemos que ela escreve ao mesmo tempo em que vive esse amor. O tempo da paixão conflui no tempo das palavras…
Paixão Simples foi lançado no Brasil em 2023 pela editora Fósforo com tradução de Marília Garcia.
P.S: Este é um dos livros em que Annie Ernaux mostra mais sua consciência narrativa e questiona o fazer literário. O tempo da paixão e o tempo da narrativa são um só. E ela expõe esse acontecimento em diversas partes do romance.
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Abraço,
Fernanda.